Neste bimestre lancei um desafio a meus
alunos escrevem crônicas tendo como mote (tema, ou base) uma notícia de jornal,
isto não é novidade, alguns cronistas já utilizam esse recurso. Moacyr Scliar usou
esse recuso. Veja um exemplo, da notícia “Olímpica da Mata Velha se torna o
animal mais caro do país; busca por ativo real inflaciona preços, diz
associação.” Ele escreveu a crônica “Vacas e homens”.
Vacas e homens
Meia vaca é vendida por R$ 1,6 milhão. A vaca nelore Olímpica da Mata Velha se
tornou, no último sábado, o animal mais caro do país e, possivelmente, do
mundo. Metade dela foi arrematada durante leilão na Exposição Internacional do
Nelore por R$ 1,6 milhão. Dinheiro, 24.set.2002.Ele leu a manchete do jornal
(com muita dificuldade, como sempre; na escola, havia sido mal e mal
alfabetizado) e, de início, não a entendeu. Meia vaca tinha sido vendida? Como?
Por quê? Quem compraria meia vaca? Para que comprar meia vaca, e não uma vaca
inteira? E que metade da vaca havia sido comprada, a da frente ou a de trás?
Vencendo a timidez, perguntou ao gerente do supermercado em que trabalhava o
que significava aquela história. O homem riu muito e explicou: na verdade, não
se tratava de meia vaca, tratava-se de pessoas que se associavam para comprar
uma vaca. Por causa do preço, claro.
Ah, sim, o preço. Aquilo era uma coisa
impressionante, R$ 1,6 milhão. Muito dinheiro, ainda que o gerente tivesse
ponderado que, em dólar, até que não era tanto. Mas, para ele, que não ganhava
em dólar, tratava-se de uma quantia astronômica. Pegou um lápis e um papel e
pôs-se a calcular (em contas, até que não se saía tão mal). E chegou à
conclusão de que, com seu salário, jamais poderia comprar uma vaca daquelas,
mesmo trabalhando toda a vida, mesmo trabalhando várias vidas. Talvez pudesse
adquirir, da preciosa vaca, a ponta de um chifre. Ou uns pelos da cauda. Ou um
fragmento do casco. Vaca fina não era coisa para seu bico.
E, então,
lembrou-se da vaca que seu pai tinha, quando moravam no interior. Não era uma
vaca de elite, como dizia a notícia, nem se chamava Olímpica; seu nome era
Mimosa. Era boa para eles a vaca Mimosa. Dava-lhes leite, verdade que numa
quantidade não muito grande para aquela família de seis filhos; mas era um
leite bom e, quando eles tomavam aquele leite, sentiam-se revigorados,
esperançosos até. Tão esperançosos que um dia decidiram vir para a cidade e
começar vida nova. Foi o que fizeram, mas essa vida não se revelara muito boa
para a família: os pais e duas irmãs haviam morrido, um irmão estava no
hospital, um outro na cadeia, acusado de roubo... Ele, pelo menos, estava
empregado. Com saudades de Mimosa, mas empregado. Com seu salário, nunca
poderia comprar meia vaca de elite. Mas um consolo lhe restava: se se tratasse
da vaca inteira, a frustração seria ainda maior. Com um suspiro que lembrou, a
ele próprio, o terno mugido da Mimosa sendo ordenhada, voltou ao trabalho - que
consistia, naquela manhã, em colocar as embalagens de leite na gôndola do
supermercado.
MOACYR SCLIAR
In: Folha de S. Paulo _ Cotidiano, 30 de setembro de 2002.
Leia
na integra a noticia: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi2409200233.htm.
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